O verbo é a alma da língua

Dos muitos professores e professoras que tive, poucos permanecem até hoje em minha memória. Manoel de história, foi um dos desses professores que nunca esqueci. Estava na sexta série, e no primeiro dia de aula ele entrou na sala cantando em voz grave e firme: "Boemia, aqui me tens de regresso..."

Eu não sabia o que era boemia nesta época, não sabia também que me apaixonaria por ela. Mas, aquele modo novo – para mim – de começar uma aula me convenceu de que aquele professor era diferente. Ele gostava de ser chamado de Nenel, que era como sua avó de 87 anos o chamava.

Outros professores insistiram em se agarrar a minhas memórias afetivas do tempo de escola. Professora Ariadne era outra delas. Não entrava na sala cantando, não fazia piadas, nem tirava pontos de alunos que erravam as bolinhas de papel lançadas ao lixo.

Ariadne mascava viciosa e serenamente  um chiclete com cheiro de hortelã, mandava seus alunos soletrarem palavras, passava dever de casa todos os dias, em resumo, era a "pior" professora que um jovem de treze anos poderia ter.

Em uma de suas aulas, enquanto falava sobre os verbos, ela nos explicava que eram as palavras que exprimiam ação, e que, portanto eram as palavras mais importantes da oração. Foi então que ela falou uma frase que nunca mais esqueci: “O verbo é a alma da língua”. Passei dias refletindo sobre essa citação, ela fazia todo o sentido do mundo pra mim. Embora fosse um aluno que tinha tudo para “dar errado”, sempre fui inclinado à literatura.

Algum tempo mais tarde, me tornei seminarista, comecei a me preparar para ser padre. E como é de se imaginar, lia a bíblia diariamente, na maioria das vezes por prazer, outras por devoção e outras vezes ainda por mero ofício. Não é preciso ter uma vida exclusivamente dedicada á religião para saber que deus fez o mundo a partir da palavra. Ele dizia “Haja luz”, e a luz tomava existência, dizia “Haja terra” e a terra passava a existir.

Esse tipo de explicação foi suficiente pra convencer o povo judeu durante muito tempo sobre o surgimento do mundo. Porém, não era o bastante para os filósofos gregos que iriam surgir alguns séculos depois. Com isso, foi necessário um esforço sobre humano para os apóstolos convencerem outras culturas dessa explicação da formação do mundo.

João, diz o seguinte no início de seu livro: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se faria. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.”

Quando se estuda em um monastério é obrigatória a dedicação ao aprofundamento de algumas línguas, tais como o latim, o hebraico, o grego... Em grego a palavra usada para este trecho de João, foi a palavra “Logos”.

Quando falamos para um grego da antiguidade: “no princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus” a explicação faz todo o sentido. Afinal, essa era justamente a questão mais latente da Filosofia da época, o famoso “Logos Grego”.

Os anos que passei estudando Teologia e Filosofia me foram muito úteis, pois me ofereceram uma formação e experiências que me serviram pra vida toda, mesmo tendo desistido da vida monástica alguns anos depois. Mas as aulas da professora Ariadne foram o que realmente me fizeram entender o que o apóstolo João queria dizer:

Se compararmos a vida com uma língua, cheia de sujeitos, predicados, objetos diretos e indiretos... Realmente o verbo seria sua alma. Pois toda oração exige um sujeito, um predicado e um verbo pra existir. Que em cada oração que eu fizer haja um verbo, uma ação que a faça valer. Não é à toa que João diz que desde o início a “ação” estava com Deus. A “ação” era Deus.

Acho que foi por isso que larguei a vida de padre; sentia falta da “ação”, essa alma da vida, que a professora  Ariadne sabiamente sabia dar valor.

“E disse: haja boemia. E ela me teve de regresso!”

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