Na Chuva, Não Tem Que Se Molhar

“Belezas à parte, quero mesmo é viver.
Chuva para mim é só tempo úmido”
(Valéria)


O ambiente é opressor, sabe que diante daquelas situações o melhor é se calar. Cruza as pernas bem delineadas e continua somente apreciando o lugar. O salão oval, abobadado, termina em lindo vitral fornecido pelo príncipe regente, as paredes são mantidas com características de época, vez por outra, surge um lugar desbotado, desgastado pelo tempo.

A reunião continua, não sabe até que horas suportará companhias tão desagradáveis, políticos vencem eleições em nome do povo, governam para si próprios, acovardados diante da vida, seguem causando mais malefícios que benefícios.

Se ao menos aquela mulher parasse um pouco de falar, ajudaria. Todos na sala sabiam que nenhum tratado internacional jamais seria assinado em prol das comunidades pobres e da preservação do meio ambiente, mas faziam defesa à proposta, daria força à candidatura.

Esta profissão tem exigido bastante nos últimos anos, antigamente ser prostituta era somente manter os clientes conhecidos ou colocar-se na calçada (até com certo grau de diversão) e esperar pelos interessados no produto. Hoje, com a suposta evolução do mundo, exigiam cada vez mais desta profissional. O perfil em moda eram as moças que falassem ao menos dois idiomas, rostos e corpos perfeitos, com conhecimentos sobre a atualidade, que se portassem bem à mesa, fossem discretas e charmosas, agindo naturalmente em ambientes freqüentados pela alta sociedade.

Saber falar, sorrir, ser bem articulada era fácil, difícil era ter que conviver com tanta falsidade e mediocridade dos ditos “representantes do povo”, fossem eles grandes administradores, políticos ou ambientalistas.

Valéria gosta e valoriza sua profissão, ganha dinheiro o suficiente para levar uma vida sem privações cotidianas e de quebra ainda auxilia os familiares que a tem como mulher bem sucedida e resolvida. Todos sabem de sua condição, não sofre retaliações morais por ter feito esta opção logo após os estudos na maior Universidade da América Latina.

Bela, transita tranquilamente em qualquer ambiente, o que a torna altamente requisitada pelos poderosos. Não carrega vínculos amorosos. Solteira, não é nem nunca pretendeu ser esposa de ninguém, acredita que assim mantém sua liberdade e privacidade, além de poder representar outras personagens: ora esposa, ora amante apaixonada, ora vilã... o que desejassem seus contratantes, afinal negócios são negócios e não pode falhar no que faz.

Assim pensando e vivendo foi que Valéria atendeu prontamente à solicitação de acompanhar o Prefeito da cidade na reunião de cúpula do partido. Jantar oferecido para discutirem as próximas eleições, quem seria o indicado para Governador, quais  “bandeiras” defenderia, características do eleitorado...a conversa avançava  noite adentro  regada a vinho e whisky. Deus sabe o quanto lhe era difícil ver a vida da população sofrida assim banalizada, mas sorria e continuava sua representação.

Findada a reunião, foi deixada no hotel com uma bela bolada. Subiu, entrou no quarto, janelas para a Av. Brasil, pegou um drinque no frigobar para deleite pessoal. Ansiava por um banho quente, robe branco, chinelas tão fofas quanto o robe e ligar o som para relaxar um pouco. Foi aí que o telefone tocou. A princípio não atendeu, soltou o corpo na poltrona, semicerrou os olhos e fingiu não escutar o insistente toque. O telefone parava um instante para retomar em gritos truncados, àquele maldito recurso de ir subindo o som com o avançar dos toques...de supetão levantou-se e se dirigiu para calar o aparelho, no visor, um rosto conhecido, atendeu.

O desespero do outro lado da linha, identificando-se como o motorista que a deixara em casa há pouco, informou que fora atacado por assaltantes que mataram o Prefeito. Precisava de ajuda, estava ferido logo ali na esquina e só conseguira fazer um recall no telefone. Antes que pensasse em atender, a voz se calou. Silêncio.

Atônita, pegou o aparelho e gritou pelo outro. Nada. Não acreditava...prefeito morto e seu número no contato telefônico! Que enrascada se metera? Ela que nunca quisera confusões! Sem qualquer pretensão de divulgação em mídia, exposta a quê?

Colocou rapidamente um jeans e uma camiseta e correu para a rua, madrugada fria, nada de movimento, na esquina o carro obstruía a passagem, com o raiar do dia, aquilo se transformaria num inferno. Não sabia se chamava a polícia, se tentava fazer um socorro, mas sabia que não poderia ignorar o fato, como muitas vezes fizera em sua vida. Assim, divagando, chegou ao local. No banco traseiro do carro o Prefeito parecia dormir, verdade seja dita, um salafrário a menos no mundo, sangue do motorista escorria pelo asfalto, cabeça inclinada para fora do carro, pobre, devia estar perto da tão esperada aposentadoria. Pegou o telefone, colocou no bolso e caiu na gargalhada.

Voltou para o hotel, tirou as madeixas louras alongadas, expondo lindos cabelos ruivos naturais, tirou as lentes de contato azuis mirando-se no negro das retinas brilhantes, banhou-se e dormiu, logo, outro cliente na linha... a vida continuava para ela... mulher de faces.

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